domingo, 25 de maio de 2014

UNIFICAÇÃO DAS POLÍCIAS.

Desmilitarização da polícia ganha fôlego no Congresso Nacional
 
   Unificação das polícias, com carreira única e ciclo completo, toma corpo ante casos frequentes de abusos cometidos por agentes da lei.
 
   A morte do dançarino Douglas Pereira, o DG, o desaparecimento do pedreiro Amarildo, a reação das forças de segurança frente aos protestos no país. A cada novo episódio envolvendo violência e policiais, cresce no Congresso Nacional a repercussão de propostas de emenda à Constituição que pedem a desmilitarização da Polícia Militar. A mais recente, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), conhecida como PEC 51/2013, prevê a reformulação do sistema de segurança pública e o modelo da polícia no país

    Em linhas gerais, Farias defende a fusão das polícias militar e civil, a criação de uma carreira única para seus servidores e o ciclo completo das atividades para toda a polícia – o que inclui desde o policiamento ostensivo às investigações criminais. Hoje as apurações sobre crimes ficam a cargo apenas da Polícia Civil.
 

                      Pela proposta, estados passariam a ter autonomia sobre que tipo de polícia seria adequada para seu território, uma ouvidoria externa seria criada e o treinamento deixaria de ser vinculado às Forças Armadas. Estados, municípios e a União teriam seis anos para implantar as mudanças a partir da aprovação da PEC.
 

                                                  Na opinião do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da PUC-RS, a criação de carreira única e do ciclo completo são os pontos mais polêmicos da PEC 51. A carreira única, diz ele, acabaria com o método em curso atualmente. “Praças e oficiais hoje entram na polícia por concursos diferentes. O mesmo acontece com agentes e delegados.”

Instituição

Azevedo avalia que os problemas que envolvem a polícia brasileira não atingem só a instituição militar, mas a civil também. A figura do delegado, comenta, muitas vezes é a de um bacharel que apenas dá a formatação jurídica ao caso, e não a de um profissional comprometido com o desenrolar da investigação. “É preciso repensar o papel dos delegados”, pontua. O especialista observa ainda que a hierarquia e os mecanismos regimentais da PM dificultam a tomada de decisões por parte dos policiais. “A partir da experiência da ditadura militar, houve uma explícita subordinação da PM ao Exército, e isso deixou marcas. É preciso retirar essa cultura”, afirma.

Concorrência

O professor de Direito Penal da UFMG Túlio Vianna diz que o ciclo parcial em vigor hoje nas polícias Civil e Militar gera concorrência entre as instituições. Ele acredita que a PEC 51 não resolverá, por si só, o problema da violência policial, mas pode fazer com que o Brasil incorpore condições já adotadas em países europeus. Seria o primeiro passo para se ter nas ruas uma polícia treinada para “proteger o cidadão e cumprir as leis”, em vez de “combater o inimigo”. “Na Europa existe polícia militarizada, mas ela não atua nos centros urbanos. Fica na zona rural, fronteiras. E mesmo militarizada, não é estadual, mas federal”, compara.

   Nos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, exemplifica, a polícia é civil. “Quem ingressa na carreira não precisa escolher se será policial civil ou militar. Em qualquer lugar do mundo, o rapaz escolhe ser policial. Ele começa a trabalhar na rua e depois, conforme a carreira vai subindo, passa para a investigação.”

Base da PM reclama de abusos e obrigações impostas

A repressão imposta pelo sistema de hierarquia e disciplina nas instituições militares tem criado um paradoxo na luta pela desmilitarização da Polícia Militar. Policiais têm clamado por deixar as fardas de lado para desfrutar da liberdade e ficar distante dos abusos e obrigações impostas pelo sistema militar.

“Hoje quem está posicionado hierarquicamente acima tende a usar o regulamento para fins espúrios”, conta um oficial da PM, que pediu para não ser identificado. Segundo ele, a legislação militar faz com que se cometam injustiças.
 
 

Liberdade de expressão é um direito barrado pela hierarquia. Outro soldado ouvido pela reportagem lembra que as patentes baixas não participam dos debates. “A partir do momento em que o policial não tem liberdade, fica sem dar ideias, opiniões. A reforma das polícias é tão ou mais importante quanto a tributária e política”, afirma. A favor da PEC 51, ele defende a desmilitarização como medida inicial para criar uma carreira de ciclo completo para as polícias estaduais. “Em muitos momentos a legislação militar, à qual a PM está sujeita, é mais importante do que a Constituição dentro desse sistema”, reclama.

O policial, no entanto, faz uma crítica à proposta: ela cria uma carreira única. “É como dizer que para ser engenheiro você tem que ter sido pedreiro”, exemplifica. Na avaliação dele, é preciso que as polícias estaduais sejam uma só. Além disso, é importante manter uma polícia municipal e federal. “Cada um terá um tipo penal como atribuição e todas com ciclo completo.”

Empregado

Uma das maiores reclamações dos policiais da base da PM é o uso do servidor como empregado particular. De acordo com o soldado, policiais são usados rotineiramente como motoristas de oficiais, o que caracteriza desvio de função. Segundo ele, se reclamar, pode tomar punição. “Somos polícia do estado ou dos coronéis?”, questiona.
 
 
Publicado em 12/05/2014 | ANTONIELE LUCIANO E DIEGO RIBEIRO | Gazeta do Povo

quinta-feira, 1 de maio de 2014

PEC-51

PEC-51: revolução na arquitetura institucional da segurança pública

Luiz Eduardo Soares (antropólogo, professor da UERJ)
        O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) acaba de apresentar a PEC-51, cuja finalidade é transformar a arquitetura institucional da segurança pública, um legado da ditadura que permaneceu intocado nos 25 anos de vigência da Constituição cidadã, impedindo a democratização da área e sua modernização.
As propostas chave da PEC-51 são as seguintes: (1) Desmilitarização: as PMs deixam de existir como tais, porque perdem o caráter militar, dado pelo vínculo orgânico com o Exército (enquanto força reserva) e pelo espelhamento organizacional. (2) Toda instituição policial passa a ordenar-se em carreira única. Hoje, na PM, há duas polícias: oficiais e praças. Na polícia civil, delegados e não-delegados. Como esperar respeito mútuo, compromisso com a equidade e coesão interna desse modo? (3) Toda polícia deve realizar o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo). Sepulta-se, assim, a jabuticaba institucional: a divisão do ciclo do trabalho policial entre militares e civis. Por obstar a eficiência e minar a cooperação, sua permanência é contestada por 70% dos profissionais da segurança em todo o país, conforme pesquisa que realizei com Silvia Ramos e Marcos Rolim, em 2010, com apoio do Ministério da Justiça e do PNUD, na qual ouvimos 64.120 policiais e demais profissionais da segurança pública (cf. “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil?” Relatório disponível no site do MJ). (4) A decisão sobre o formato das polícias operando nos estados (e nos municípios) cabe aos Estados. O Brasil é diverso e o federalismo deve ser observado. O Amazonas não requer o mesmo modelo policial adequado a São Paulo, por exemplo. Uma camisa-de-força nacional choca-se com as diferenças entre as regiões. (5) A escolha dos Estados restringe-se ao repertório estabelecido na Constituição –pela PEC–, o qual se define a partir de dois critérios e suas combinações: territorial e criminal, isto é, as polícias se organizarão segundo tipos criminais e/ou circunscrições espaciais. Por exemplo: um estado poderia criar polícias (sempre de ciclo completo) municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo (previstos na Lei 9.099); uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra o crime organizado. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos. (6) A depender das decisões estaduais, os municípios poderão, portanto, assumir novas e amplas responsabilidades na segurança pública. A própria municipalização integral poder-se-ia dar, no estado que assim decidisse. O artigo 144 da Constituição, atualmente vigente, é omisso em relação ao Município, suscitando um desenho que contrasta com o que ocorre em todas as outras políticas sociais. Na educação, na saúde e na assistência social, o município tem se tornado agente de grande importância, articulado a sistemas integrados, os quais envolvem as distintas esferas, distribuindo responsabilidades de modo complementar. O artigo 144, hoje, autoriza a criação de guarda municipal, entendendo-a como corpo de vigias dos “próprios municipais”, não como ator da segurança pública. As guardas civis têm se multiplicado no país por iniciativa ad hoc de prefeitos, atendendo à demanda popular, mas sua constitucionalidade é discutível e, sobretudo, não seguem uma política nacional sistêmica e integrada, sob diretrizes claras. O resultado é que acabam se convertendo em pequenas PMs em desvio de função, repetindo vícios da matriz copiada. Perde-se, assim, uma oportunidade histórica de inventar instituições policiais de novo tipo, antecipando o futuro e o gestando, em vez de reproduzir equívocos do passado. (7) As responsabilidades da União são expandidas, em várias áreas, sobretudo na uniformização das categorias que organizam as informações e na educação, assumindo a atribuição de supervisionar e regulamentar a formação policial, respeitando diferenças institucionais, regionais e de especialidades, mas garantindo uma base comum e afinada com as finalidades afirmadas na Constituição. Hoje, a formação policial é uma verdadeira babel de conteúdos, métodos e graus de densidade. O policial contratado pela PM do Rio de Janeiro para atuar nas UPPs é treinado em um mês, como se a tarefa não fosse extraordinariamente complexa e não envolvesse elevada responsabilidade. A tortura e o assassinato de Amarildo, na UPP da Rocinha, não foram fruto da falta de preparo, mas do excesso de preparo para a brutalidade letal e o mais vil desrespeito aos direitos elementares e à dignidade humana. A tradição corporativa, autorizada por fatia da sociedade e pelas autoridades, impõe-se ante a ausência de uma educação minimamente comprometida com a legalidade e os valores republicanos. De que serve punir indivíduos se o padrão de funcionamento rotineiro é reproduzido desde a formação, ou no vácuo produzido por sua ausência? (8) A PEC propõe avanços também no controle externo e na participação da sociedade, o que é decisivo para alterar o padrão de relacionamento das instituições policiais com as populações mais vulneráveis, atualmente marcado pela hostilidade, a qual reproduz desigualdades. Assinale-se que a brutalidade policial letal atingiu, em nosso país, patamares inqualificáveis. Para dar um exemplo, no estado do Rio, entre 2003 e 2012, 9.231 pessoas foram mortas em ações policiais. (9) Os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança serão plenamente respeitados durante as mudanças. A intenção é que todos os policiais sejam mais valorizados pelos governos, por suas instituições e pela sociedade. (10) A transição prevista será prudente, metódica, gradual e rigorosamente planejada, assim como transparente, envolvendo a participação da sociedade.
Por que a PEC-51 me parece decisiva? Por que considero indispensável e urgente a desmilitarização e a mudança do modelo policial? As respostas se apoiam na seguinte tese: o crescimento vertiginoso da população penitenciária no Brasil, a partir de 2002 e 2003, seu perfil social e de cor tão marcado, assim como a perversa seleção dos crimes privilegiados pelo foco repressivo, devem-se, prioritariamente, à arquitetura institucional da segurança pública, em especial à forma de organização das polícias, que dividem entre si o ciclo de trabalho, e ao caráter militar da polícia ostensiva. Devem-se também às políticas de segurança adotadas e não seria possível, no modo em que transcorre, se não vigorasse a desastrosa lei de drogas. Observe-se que a arquitetura institucional inscreve-se no campo mais abrangente da justiça criminal, o que, por sua vez, significa que o funcionamento das polícias, estruturadas nos termos ditados pelo modelo constitucionalmente estipulado, produz resultados na dupla interação: com as políticas criminais e com a linha de montagem que conecta polícia civil, Ministério Público, Justiça e sistema penitenciário. Pretendo demonstrar que a falência do sistema investigativo e a inépcia preventiva –entre cujos efeitos incluem-se a explosão de encarceramentos e seu viés racista e classista– são também os principais responsáveis pela insegurança, em suas duas manifestações mais dramáticas, a explosão de homicídios dolosos e da brutalidade policial letal.